Por Francisco A. Taboada
Num manuscrito que data do século
XVI, The Weddynge of Sir Gawen and Dame Ragnel (Rawlinson C86), aparece um
notável poema cavalheiresco onde Sir Gawain compartilha uma aventura com o Rei
Artur.
Porém, é o nobre e leal cavaleiro
sobrinho do Rei quem deve realizar a façanha suprema, já que, simbolicamente,
Sir Gawain é o “alter ego juvenil” de Artur e, como tal, é um agente ativo no
ato místico que daria o núcleo à aventura. A tarefa mais crítica e difícil é,
então, a que deve executar este valoroso cavaleiro.
O conto narra o seguinte:
Encontrava-se o Rei Artur
desfrutando de uma jornada de caça quando, perseguindo um corpulento cervo,
afastou-se do resto que compunha a partida.
Rei Artur
Quando alcançou sua presa,
desmontou e, com sua faca de caça, começou a preparar a peça capturada.
Logo percebeu que estava sendo
observado, e quando elevou sua vista, surgiu à sua frente um cavaleiro
fortemente armado.
- “Sejais bendito, Rei Artur. Me
fizestes afronta há muitos anos e hei de vingá-la. Vossos dias estão contados.”
O Rei replicou:
- “Vós estais armado e eu só
tenho esta adaga. Quem sois vós?”
O misterioso cavaleiro respondeu:
- “Meu nome é Gromer Somer
Jouré”.
Ainda que o nome não tivesse
significado para o Rei, este havia tocado um ponto importante com respeito aos
costumes cavalheirescos, e o cavaleiro teve que ceder algo, com respeito a sua
desarmada vítima.
Sir Gromer Somer Jouré fez jurar
a Artur que, no ano seguinte, a esta mesma data, ele regressaria a este mesmo
lugar, só, com sua adaga de caça como única arma, e trazendo como pagamento de
resgate por sua vida, a resposta ao seguinte enigma: QUE É O QUE UMA MULHER
MAIS DESEJA NO MUNDO?
O Rei deu sua palavra e regressou
a seus cavaleiros.
Não podia ocultar seu abatimento
e Sir Gawain, seu sobrinho, percebendo a tristeza no rosto de seu Rei, o levou
à parte e perguntou sobre o acontecido.
Sir Gawain
Artur expôs o sucedido e ambos
deliberaram por longo tempo. Finalmente, Sir Gawain propôs o seguinte: Viajar
ambos por países estranhos a perguntar a quantos homens ou mulheres encontremos
pelo caminho que pensavam sobre tal enigma. Cada um, por sua vez, iria anotando
todas as respostas e, ao cabo de um ano, se reencontrariam na véspera para
avaliar o que tenham recolhido.
Passou o tempo e ambos retornaram
à corte. O Rei, não obstante a quantidade de respostas, ainda se sentia
inquieto. Foi então que se aventurou na espessa floresta de Inglewoode encontrando-se
com a bruxa mais feia que ser humano algum haja visto.
Rosto vermelho, nariz sujo e
pontiagudo, boca larga, alguns dentes amarelos mal repartidos em ambas as
gengivas, um pescoço comprido e magro, ombros pesados e caídos, e como grotesco
contraste, montava um cavalo ricamente selado.
Uma horrível gargalhada fez
empalidecer o Rei que se sentia estupefato ante tão detestável presença.
- “Rei Artur” - Disse a bruxa. –
“Todas as respostas obtidas por vós e por Sir Gawain são erradas. Se não vos
ajudar, estarás morto.”
O Rei contestou:
- “Dizei-me a que vos referis e
por que minha vida está em vossas mãos e eu vos prometo satisfazer o que
queirais.”
A proposta da bruxa deixou o Rei
atônito.
- “Quero que me concedais como
esposo a Sir Gawain, e os proponho um pacto: se minha resposta não vos salvar a
vida, meu desejo será vão; porém, se minha resposta vos salvar, me concedereis
ser a esposa de Sir Gawain. Escolheis logo, senão morto sereis.”
Sir Gawain e a Dama Abominável
- “Santa Maria! Não posso ordenar
a Sir Gawin que se case convosco. Isto depende somente dele.”
E Dona Ragnel, que assim se
chamava a bruxa, respondeu:
- “Voltai então ao vosso palácio,
e persuadais a Sir Gawain.”
Quando o Rei Artur voltou a se
encontrar com Dona Ragnel e lhe comunicou a promessa de seu sobrinho, esta lhe
disse então:
- “Senhor, agora sabereis que é o
que as mulheres mais desejam de tudo o que existe: A respeito dos homens
desejamos, mais que qualquer coisa, ter SOBERANIA.”
Nossa natureza conta com dois
arquétipos, o masculino e o feminino. Particularmente, os desequilíbrios de
nossa personalidade advêm, em geral, do fato de negarmos dignidade e
consciência a uma quarta parte de nossa natureza. O perigo está em colocar a
qualidade no lugar errado, erro psicológico e espiritual que cometemos
repetidas vezes em nossas vidas pessoais metafísica. Porém, quando um elemento
excluído é restituído recebendo seu verdadeiro valor, rapidamente se torna positivo
e criativo.
Dona Ragnel, bruxa horrível, é
essa parte de feminilidade que possui a natureza masculina e em que, às vezes,
por cultura ou educação, não prestamos a devida atenção. Habitamos um mundo
onde só parece haver lugar para o masculino, não favorecendo essa sociedade o
completo desenvolvimento de nossa natureza; um mundo voraz e competitivo em que
os fracos não podem frutificar e em que até as próprias mulheres, através de um
mal entendido feminismo, se esforçam por desenvolver desmedidamente suas
naturezas masculinas, afogando o que nelas existe de verdadeiro valor.
Continuemos a história:
O Rei Artur, como correspondia a
um cavaleiro, se apresentou ao encontro com Sir Gromer Somer Jouré e entregou
os livros com as respostas, esperançado de em que alguma delas fosse a correta
e assim ficassem livres daquele terrível compromisso ele e seu sobrinho.
Sir Gromer Somer Jouré
Sir Gromer revisou uma a uma
todas as respostas e, finalmente, sentenciou:
- “À fé minha, Rei, que sois um
homem morto.”
- “Aguarda Sir Gromer. - Disse
Artur. - Ainda tenho uma resposta mais. O que mais deseja uma mulher é que lhe
seja outorgada a ‘Soberania’, pois o que mais lhe agrada é poder tomar suas
próprias decisões.”
- “A que vo-lo contou. -
vociferou Sir Gromer com uma fúria incontível - peço a Deus que a possa ver
ardendo em uma fogueira porque foi minha irmã Dona Ragnel, aquela velha bruxa.
Deus a confunda... pois do contrário eu haveria podido subjugar-vos... Tenhais
muito bons dias.”
Ao alívio que experimentou Artur,
seguiu-se uma grande tristeza. Porém Sir Gawain se comportou com cortesia e se
apresentou ao casamento da maneira mais viril.
- “Louvado seja Deus! - Disse
Dona Ragnel. - Por consideração a ti quisera ser uma mulher formosa, porque tua
vontade é muito boa.”
Realizou-se a boda com missa e
banquete, e a noiva esbanjou grosseria e mau gosto a ponto de todos se
lamentarem e se compadecerem de Sir Gawain por haver tido que se sacrificar
unindo-se àquele ser demoníaco.
Esta noite, no leito, Sir Gawain
jazia de costas para sua consorte. Mas logo ela lhe disse:
- “Ah, Sir Gawain! Visto que sou
casada convosco, mostrai-me vossa cortesia no leito. Se eu fosse formosa não
vos comportarias dessa maneira. Não fazeis conta nenhuma do laço conjugal. Por
consideração a Artur, beijai-me pelo menos. Rogo-vos, fazei-lo por mim. Vamos,
mostrai o apaixonado que podeis ser!”
Sir Gawain, fazendo gala de sua
gentileza, respondeu:
- “Farei mais que isso, juro por
Deus.”
E se voltou para ela. E viu que
era a mulher mais formosa que jamais pudera imaginar.
- “Por Jesus Cristo! - Disse o
jovem. - Quem sois?”
E Dona Ragnel respondeu:
- “Senhor, sou vossa esposa.”
- “Ah senhora minha! Sou muito
digno de reprovação. Mas agora vos mostrais tão formosa quanto hoje fostes a
ser mais feio já contemplado. Que sejais assim, senhora. Me agrada muito.”
Dona Ragnel
Mas Dona Ragnel explicou ao
galante cavaleiro que sua beleza não duraria, pois somente podia ser bela a
metade do dia e feia a outra metade. Porém deu ao cavaleiro a possibilidade de
escolher entre ser feia para todos durante o dia e bela de noite, só para ele;
ou bela para todos durante o dia e, de noite, feia na intimidade.
- “Que escolha difícil! -
respondeu Sir Gawain. – Quisera escolher o melhor; sem dúvida, não sei que
dizer. Querida senhora, que seja como desejais, deixo a escolha em vossas mãos.
Meu corpo, meu coração e todo o mais são vossos para fazer deles o que
queirais: tomaí-los ou deixaí-los; assim o juro ante Deus!”
- “Ah, louvado seja Deus, cortês
cavaleiro! - disse a Dama muito animosamente. – Bem aventurado sejais entre
todos os cavaleiros do mundo, porque agora fiquei livre do encantamento e me
tereis formosa e atraente de dia e de noite.”
E então Dona Ragnel contou a Sir
Gawain de que maneira sua madrasta a havia encantado mediante as artes da magia
negra, e como a havia condenado a permanecer sob esta repugnante figura até que
o melhor cavaleiro da Inglaterra se casasse com ela e lhe transferisse a
“Soberania” de todo seu corpo e seus bens.
- “Assim foi como me deformou. - disse
Dona Ragnel. - E vós, senhor cavaleiro, que me haveis dado sem condições a
‘soberania’, beijai-me agora, beijai-me e alegrai-vos, vos rogo.”
E então, cheios de alegria,
desfrutaram sua felicidade.